Brasília – O ator Gilson Cezzar interpreta o Cristo Negro
em encenações populares durante a Semana Santa,
em Samambaia, bairro a cerca de 40 quilômetros da capital.
A via-sacra afirmativa foi criada há 10 anos para denunciar,
por meio da religião, a desigualdade racial e a violência – Valter Campanato/ABr
Entre profetas e fiéis, telões exibem imagens de filas em hospitais do sistema público de saúde ou de crianças em situação de rua. Na cruz, um Jesus Cristo negro lembra as desigualdades do país. É assim, com manifestações pela igualdade racial e elementos da cultura popular que um grupo de atores de Samambaia, bairro do Distrito Federal, reconta a história da via-sacra, conhecida há mais de dois mil anos.
A notícia foi publicada na Agência Brasil/Luana Lourenço:
Batizado de Paixão do Cristo Negro, o espetáculo mistura as narrativas religiosa e da realidade social brasileira para relacionar os sofrimentos do Cristo às dificuldades diárias, como o combate à pobreza, à violência e às injustiças.
“Nossa preocupação era trazer a temática do racismo, do preconceito racial, justamente quebrando a tradição de um Cristo branco, de olhos azuis, europeu. Queríamos um Cristo mais próximo da nossa realidade”, conta o ator Gilson Cezzar, que interpretou o protagonista na primeira edição do evento, em 1998, e há dois anos reassumiu o papel.
A idéia de inovar foi levada ao pároco, que, segundo Cezzar, respondeu que o Cristo “poderia ser negro, branco, índio ou amarelo”. No entanto, o grupo ainda temia o possível preconceito vindo da própria comunidade. “No primeiro ano da encenação, tive medo de que o Cristo fosse apedrejado de verdade nas ruas, por ser negro. Mas aconteceu o contrário, foi muito bem recebido, mesmo entre os mais velhos, às vezes mais conservadores”, lembra.
Na estréia do Cristo negro, o espetáculo contou a história da crucificação fazendo referências à chacina da Candelária, episódio de violência policial em 1993 que resultou na morte de oito crianças e adolescentes no Rio de Janeiro.
O desemprego, as dificuldades dos idosos, a realidade das crianças em situação de rua e o preconceito contra pessoas com deficiência são exemplos de outras temáticas sociais abordadas ao longo dos 10 anos de espetáculo.
“Além do racismo, tratamos de outros tipos de preconceitos e de violência”. A pluralidade da via-sacra afirmativa também está na composição do espetáculo teatral. Ao invés de melodias tradicionais, uma versão cantada da oração do Pai Nosso levou o rap e o hip hop à trilha sonora da apresentação da morte de Cristo na sexta-feira Santa, por exemplo.
Hoje (23), durante a festa da ressurreição, será a vez de homenagear as folias, manifestações da cultura tradicional e religiosa do interior do Brasil.
Na última sexta-feira (21), o Brasil comemorou o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Na avaliação de Gilson Cezzar, o Cristo negro, apesar de algumas melhorias, o país ainda tem muito a avançar para que a igualdade racial seja um direito garantido aos cidadãos.
“Temos que combater o preconceito sempre, mas já percebo avanços. As pessoas estão reconhecendo mais seu valor, sua identidade”, completa.