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Já vi muitas coisas estranhas no mundo animal, mas uma criatura como a que está acima, nunca vi em lugar nenhum. Trata-se de um daqueles camundongos especialmente criados em laboratório, com sistema imune deprimido “de fábrica”, que servem para estudar transplantes, células-tronco e outros temas arcanos da biomedicina. Tampouco sofre de alopecia androgenética (a popular calvície, pra quem não conhece). O bicho é um rato-toupeira-pelado (Heterocephalus glaber), provavelmente o mamífero mais inusitado das quase 5.500 espécies do grupo que circulam pelo planeta. Ele é, para todos os efeitos, o que acontece com um mamífero quando ele vira inseto.
A notícia do G1 diz mais:
E não qualquer inseto, apresso-me a acrescentar. Os ratos-toupeiras-pelados (ufa!) são criaturas eussociais, ou seja, apresentam um modo de vida incrivelmente parecido com o de abelhas, formigas e cupins. E isso inclui uma divisão social dos papéis reprodutivos que, pode apostar, ninguém imaginaria ser possível entre mamíferos. E esse é só o começo. Várias outras características fisiológicas e comportamentais inusitadas fazem desses bichos uma prova viva de como a adaptação a um novo ambiente pode virar do avesso uma espécie.
Roendo sem parar
Se não fosse pela feiúra, um observador mais apressado poderia achar que não há nada de muito especial nesses roedores. De fato, a aparência deles é só uma versão exagerada do que acontece com inúmeros outros bichos que se adaptam a uma vida fossorial, ou seja, em tocas debaixo da terra. Os ratos-toupeiras-pelados se inserem num grupo bem maior de roedores que cavam galerias subterrâneas com os dentes incisivos (e, em menor grau, com as patinhas da frente).
Como os peixes que vivem em cavernas, muitos ratos-toupeiras são virtualmente cegos, o que faz todo o sentido quando se considera que eles não estão em contato com a luz do Sol durante 99,99% de suas vidas. Antes que alguém acuse este pobre colunista de lamarckismo, o que quero dizer é que a falta de visão significa apenas a “perda da força” da seleção natural sobre os olhos, agora desnecessários.
Portanto, mutações que levassem ao enfraquecimento da vista e da formação dos órgãos visuais não seriam penalizadas com dificuldades para sobreviver; aliás, poderiam até ser positivas, já que a energia que seria gasta em fabricar olhos inúteis poderia ir para pedaços realmente importantes do organismo. Daí a natureza cegueta dos bichos e seus parentes.
Terminado o nosso rápido excurso antilamarckista, voltemos ao que é único dos ratos-toupeiras-pelados. Com apenas 10 cm de comprimento, os bichinhos geram extensas redes de túneis debaixo da savana da Etiópia, da Somália e do Quênia – por coincidência, justamente o ambiente nativo da maioria dos ancestrais da humanidade nos últimos milhões de anos. Não é muito surpreendente que eles se alimentem de raízes. O que é realmente surpreendente é como eles fazem sexo e têm filhos.
Especialistas em maternidade
Numa mesma rede de tocas, dentro do mesmo grupo social, vivem entre 70 e quase 300 ratos-toupeiras – uma quantidade de indivíduos bastante grande quando comparada com o que se vê entre outros mamíferos não-humanos. Mas talvez seja mais correto chamar esse grupo enorme de colônia ou colméia, porque é grande a chance de que todos os animais sejam filhos da mesma mãe e apenas dois ou três machos.
É exatamente isso: os ratos-toupeira têm uma “rainha”, tal como as abelhas e as formigas. O termo inclui, porque incrível que pareça, coisas que são típicas das rainhas desses insetos. As ratas-toupeiras rainhas são bem maiores que as fêmeas normais, são as únicas a produzir novos filhotes (em grandes ninhadas, com até 12 bebês) e sua presença, de alguma forma, “inibe” a capacidade reprodutiva de suas filhas. As demais roedoras da colônia não são fisiologicamente estéreis, mas seu organismo simplesmente não produz filhotes enquanto a rainha está viva. Quando ela morre, as fêmeas remanescentes lutam, muitas vezes com alto grau de violência, para assumir a posição vaga.
Os paralelos com os insetos eussociais ficam ainda mais detalhados e bizarros. Parece haver, por exemplo, uma especialização de papéis parecida com as das formigas – haveria ratos-toupeiras “soldados”, “operários” e por aí vai. Alguns abrem túneis, outros limpam túneis (levando a terra excedente para fora das galerias), outros trazem para dentro das tocas as raízes ricas em carboidratos que são o menu principal dos bichos. (Diz a lenda que um único grupo é capaz de detonar uma plantação de batata-doce.)
Como se não bastasse, essas criaturas ainda trabalham juntas para manter constante a temperatura das tocas e dos seus próprios corpos. Por razões que ainda não estão muito claras, os ratos-toupeiras não mantêm constante a temperatura de seu organismo, como os demais mamíferos, e por isso se juntam ou se afastam para controlá-la. Há uma correlação entre o fato de terem, na prática, “sangue frio” (com metabolismo relativamente baixo), e sua longevidade de quase 30 anos, um bocado alta para roedores.